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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

30 dezembro, 2008

DURO É ESCREVER VERSOS


A Realidade dos Factos
Manuel Fernando Gonçalves Edições & ETC, 2008

Este livro do poeta Manuel Fernando Gonçalves (1951) está dividido em 4 partes (treze poemas contraditórios com limeriques; de morrer a rir; em sua firmeza vaga e intransigência absoluta).
A primeira parte expressa uma relação com o próprio corpo e o seu deambular sentido na urbe. Tudo convém ao poema para dizer a estranheza de um corpo metamorfose, devir ou já findo.
Depois vai-se para dentro, para a substância de que são feitos os afectos ou a falta deles, para uma vida «travestida» de muitas cores e figuras que a enchem.
O narrador escolhe a melhor estrutura e personagens para constituir o poema. E dá-se bem com a escolha num «coração» sempre à beira do colapso. A ironia abunda sobre o jogo amoroso e a vida a tornar-se pó e sombra. Por vezes a mesma figura de estilo avança sobre o que não tem saída, a morte, ou um emprego fora de versos.
Este livro daria excelentes canções como as que identificadas ou não suturam esta poesia.
«Calo, na mesma, o que devo
dizer: tenho metade em ti,
sou todo teu. O que é certo
é que nunca mais te livras
de ir queimar ao sol, pelo menos,
alguma sombra de que precisas.»

É triste este livro com um caudal de riso por baixo, em versos que exigem uma perfeita pronunciação, já que a rima enche estes versos, por dentro e na voz.

30 novembro, 2008

A pensar em Duchamp ou um equívoco funcional


Muñoz e Wool




A Prisão de Muñoz

Fomos ver de uma assentada duas exposições a Serralves: as de Juan Muñoz e Christopher Wool. Conhecia há muito a obra do artista espanhol, recentemente falecido. Olho para ela desde, talvez, a década de oitenta. Não conhecia, no entanto, um tríptico pintura ali exposto que se me revelou fundamental para entender a obra tridimensional: Desenhos de Costas. Num destes quadros um torso levanta-se do negro como um molde táctil, numa dimensão muscular que lhe dá vida, escondendo-se sob a tinta negra a cabeça e os membros.


Todos os problemas que Muñoz levanta nas relações do corpo com o espaço permanecem em nós quando saimos da sala: fechadas sobre si próprias (e um espelho em que a figura se possa mirar apenas amplia essa prisão), as figuras debatem-se contra a luz natural e as coordenadas do seu lugar físico, ora pela verticalidade (como no Anão com 3 Colunas), ora pela horizontalidade (como na instalação O Ponto). E depois há o derrame de uma sobre a outra num desenho de chão com figura ao fundo, como bibelot numa parede (que aqui reproduzo): a sala balouça connosco dentro e só a pequena escultura presencia esta onda.




Wool (1955, Chicago)


Uma das telas diz-se, pretende de nós linguagem, uma proto-literatura que a salve.


Limpar. É a primeira palavra que se impõe. Limpar o quê? Pergunta-se. Os vestígios. Do pó, do sujo, do que desarmoniza. Só que a limpeza dos vestígios deixa sempre uma mancha. Limpar então os vestígios de alguma técnica humana é aqui libertar o quadro de uma pintura e, simultaneamente, revelar uma mancha que ficará para sempre sobre a outra que é a da pintura. Então, a limpeza, com um pano por exemplo, deixa para além da mancha habitual o enigma da harmonia eliminada, pois não desejada. Estamos já noutro caminho, não o da pintura mas o que sucede à pintura, unidos num determinado espaço e no mesmo dispositivo.


E depois, nalgumas telas, oculto que parece estar o outro trabalho do artista (o primeiro), um traço de tinta ilude a própria mancha nos olhos dos observadores.


Tem um fim à vista este percurso pctórico.

25 novembro, 2008


Título: Myra

Autor: Maria Velho da Costa

Editora: Assírio & Alvim, 2008


Myra é um romance sobre uma adolescente russa perdida no Portugal profundo. Pretendia chegar à sua pátria mas ficou-se no Porto. Aspecto interessante: a mudança de nome (tem vários ao longo da narrativa) é também uma forma de fazer um destino e um passado.

Este romance tem, no entanto, uma ausência que me marcou: embora luminoso, com cenas marcantes, li-o como um filme mudo. Não há som. Os cães ladram mas não se ouvem; as armas são mudas mesmo no disparo. Morre-se sem ruído (nenhum estampido), vê-se apenas o sangue a apodrecer mas nenhum som. Nasce-se sem ruído, como um acidente afastado da narrativa que o leitor observa de longe. Mesmo os «dizeres» soltam-se da língua para um dentro, para outra voz que, às vezes, é a do leitor. Todas as vozes constroem-se sobre esta mudez.

A história de Myra é uma história mental, telepática.

18 outubro, 2008

O Corpo Táctil


Herberto Helder

A Faca Não Corta O Fogo

Assírio & Alvim, 2008

(Capa com pintura de Ilda David)


Primeiro aparece a cabeça, luminosa entre as mãos. Deixa ver-se, entreaberta, um pouco da boca. Já de há muito que assim é. É da cabeça incendiada que irradia a luz e o fogo para os membros. Sabemos, em partes que nos são dadas, o que está por detrás desta misteriosa «aura» (não devia usar estas palavras) que se ouve e vê a uma grande distância: é a força de um corpo que encontrou uma língua quando procurava a carne. Mas a voz não se deixa ficar. Vai atrás, esgravatando os materiais (elementos priméginos), sujando e sugando o sopro do que permanece vivo mesmo que pareça morto.
Tudo leva muito tempo a amadurecer: é preciso primeiro que não se afaste a luz; que ela incida inteira sobre os objectos (ou os frutos). Depois que surja entre o poeta e eles uma penumbra tensa, convertida em língua (podia ser outra coisa, mas é a linguagem que o homem tem mais à boca). E depois deixe-se arrefecer. Tudo é demasiado fogo, demasiado incêndio: o fundamento foi incendiado por um dedo abrasivo (divino?). Por isso também o que releva e se revela, ganhando visibilidade, é abrasivo pois ao fogo lento ficou exposto. Só no fim uma voz / sobre a voz universal de outra boca.
Assim o tempo é sempre outro. Não se sabe donde emerge, de que época, de que história, de que epifania mas faz-se aparição em metamorfose. Vem de um deserto ao longe, de um lugar ainda não achado, onde os homens se vêm pela noite dentro e ouvem-se falar do acontecido. Só deus a ter existido teve uma linguagem igual à destes homens: falava e os «nascidos» cresciam na sua boca (deus era o espaço, e nada mais havia fora dele). Um dia deve ter-se distraído e no segundo seguinte deixou de existir. E a sua tradição permaneceu nos nascidos que o ouviam. Pode ter sido assim. E à volta dos poços de água (minas incandescentes e subterrâneas) falavam de amor, juntando palavra a palavra até ao rosto, ao timbre certo: uma língua sempre «arcaica». Sopravam-se nas bocas o inédito (o vulgo, o pouco, o inesperado); e quando tudo se cala, mesmo a noite e os que a habitam, espera-se Deus: fala-se (ou escreve-se) à espera de deus por estas paragens.
Em tudo há magia e o poeta descobre-a nas pequenas cenas do quotidiano, porque mesmo aí há uma habitação para a eternidade, quando se torna «extraordinário» e combustível (Deus funciona na sua glória electrónica). Há uma abertura para esse lugar já deserto a esta hora do século. As bocas que antes contavam encheram-se de areia, ganharam o vento mas ainda se podem ouvir algumas palavras, sons, restos com que o artesão compõe o poema inteiro na sua oficina. Redivivo. É esta a palavra. Uma obra inteira, na mesma língua, na mesma estrutura sonora e ocular, para fundar um poema e trazer de volta um mundo.
O lugar e a língua de um homem, juntos e voltados para um futuro,
abrupto termo dito último pesado poema do mundo.

09 outubro, 2008

Le Clézio

O autor de um livro aos 23 anos chamado «Les Procès Verbal*» (não traduzido) e de duas obras maiores da literatura francesa, DESERTO (antecipação notável do que hoje o Sul da Europa vive com a imigração ilegal, com tradução magnífica de Fernanda Botelho, D.Quixote, 1986) e Índio Branco (tradução de Júlio Henriques, Fenda, 1988) é o novo Nobel da Literatura.
* Correcção: existe tradução deste livro com o título O Processo de Adão Pollo, Ed.Europa-América, 2008, Trad. de Manuel Villaverde Cabral

23 setembro, 2008

Por nada me atingir senão a fuga


Amadeu Baptista
Sobre as Imagens
/Sobre las Imágenes (trad. para o espanhol por Uberto Stabile)
Cosmorama Edições, 2008


Eis um poeta da geração de oitenta. Lembro-me de um livro seu, tenho a capa na cabeça: Maçã.
O que este poeta por este livro nos traz é uma leitura da pintura sacra que emergiu com a Renascença. Trata, sobretudo, dos catorze painéis «provenientes do antigo retábulo da capela-mor da Sé de Viseu, agora expostos no Museu Grão Vasco», nesta cidade, tal como é indicado em nota prévia.

Refazer a imagem com as palavras levanta sempre um problema de representação. E este problema prende-se a uma dualidade imagética: a que oferece a poética e a que construímos para um nome, uma cena ou apenas uma palavra (ressurreição, ascensão, Cristo, última ceia, etc). Portanto, o desconhecimento da pintura no leitor parece ser, no acto de ler, o desconhecimento do que é verdadeiro que se afasta poema após poema. Porque a prosódia que se aproxima (e pretende ser aproximação) oferece-se ao engano, à ilusão (como quase toda).
O poema não se perde, no entanto, na encenação. Mistura-se com um quotidiano sempre à espreita e à espera de fazer parte da história que está a ser contada a partir de uma memória desenhada. Não é, portanto, uma «recriação ecfrásica da iconografia desses painéis» mas o vir à língua uma época da pintura também ela encenando, por detrás do ícone, a vida quotidiana.

(Este livro mereceu o Prémio Internacional de Poesia Ibérica – 2008)

09 setembro, 2008

Uma Paciência Selvagem


Adrienne Rich
Uma Paciência Selvagem, Ed. Cotovia, 2008 (edição bilingue)
Tradução de Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade

Traduz-se finalmente, em volume, Adrienne Rich para o português. É de assinalar o facto, bem como o seu atraso. Nascida em Maryland (EUA) em 1929 esta autora tem introduzido no contexto literário norte-americano (bem como noutros países) temas que são aberturas e vias para novas poéticas.
Na normalidade das línguas vivas (embora merecedoras de distinção em diferentes continentes, cidades ou aldeias, é importante descobrir contributos intralinguísticos a partir de posições ideológicas (sejam a favor da homossexualidade ou da não ocupação por colonatos judeus das terras palestinas. Rich escreve desde há muito sobre o problema da opressão, da doméstica à do estado. Não se furta a deixar-se queimar e a queimar os outros: the typewriter is overheated, my mouth is burning, I cannot touch you and this is the oppressor’s language (A máquina de escrever está sobreaquecida, a minha boca arde, não posso tocar-te e esta é a língua do opressor).

Como conselho: pode ler-se Rich juntamente com o ensaio “As Línguas de Eros” (in Os Livros que não Escrevi, George Steiner, Gradiva, 2008).

Espero voltar aqui.

O Eu Apócrifo de Diego Doncel


En Ningún Paraíso/Em Nenhum Paraíso, Averno, 2007
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães

A ideia de fantasma colou-se-me a esta poesia. O estranho não é o outro mas aquele que se vê transformado numa figura que apenas tem o nome que os outros lhe dão. E aquele que é fantasma mais fantasma se torna cada vez que o diz (o que é perceptível ao longo do livro) e no tempo de invenção de si-mesmo, pois inventa-se a partir dos outros para poder usufruir de uma realidade que tem como destino (a que não deve fugir: um princípio moral):
«He tenido que inventarme quién era para, de vez en cuando,
Creerme en posesión de algo de realidad
» (pg.42).
Só que esta possessão é também esquecimento. Ir em direcção à realidade para a possuir é deslocar-se para fora do seu horizonte, a caminho de outro, deixando o seu poiso pronto para ser reocupado. Este duplo vazio, em si e atrás de si, presente e passado, é o do morto (e da agonia):
«y lo que no sé es si puede mourir un muerto» (pg.44).
Não ter presente, pois está em trânsito, é não ter futuro, apenas passado. Mas este passado já não é o do transeunte pois é apócrifo e está fora dele (pg.67): de um lugar de ninguém «para um lugar de ninguém» (título de um poema do livro).

A noção de fantasma atravessa toda a literatura moderna derivada da «brisa espiritual» que percorria a geografia técnica e influenciou os ofícios humanos. E desde então foi-se incrustando em muitas artes, nelas derivando, sobretudo, da separação do indivíduo e da sua desnaturalização. A não pertença a lugar nenhum, tão presente neste livro de Doncel (que sempre assume os seus textos como autobiográficos); o caminho tracejado para outro lugar (outra geografia afectiva) onde seja possível uma naturalização (impossível) ou, pelo menos, o seu re-conhecimento e identificação (a procura de quem sou) são sinais a partir dos quais se chega constantemente a um encontro com a morte.
Expressar os desertos («Ai de quem traz em si desertos», Nietzsche) e encontrar-se com o fantasma é o mesmo que encontrar-se com o seu desaparecimento. No poema «Testamento», fantasma, desaparecimento e deserto, marcam o percurso poético. A substância deixou de ser a identidade para ser algo (paradoxal) bem mais real como a areia que na brisa viaja entre línguas, pátrias e continentes. Sempre o deserto onde o Eu é um sonho falso que o mundo «maligno» inventou; um eu que não serve (pg.77).

Já sei que nada vai salvar-me (pg.83)

23 junho, 2008

O VOO DAS AVES



Faço eco aqui de uma exposição intitulada “ O Silêncio das Cegonhas”, a realizar no Centro de Educação Ambiental de Arronches, no dia 28 de Junho (sábado) de 2008, pelas17.30 horas.
A mostra em apreço apresenta 22 trabalhos da autoria de Carlos Inácio e Pedro Inácio.


(deixo fotografia de Carlos Inácio a acompanhar um texto meu sobre essas aves)






“As aves são, neste momento, as divindades dos mortais»
(palavras de Pistetero em «As Aves», de Aristófanes)

Há palavras difíceis de pronunciar, parecem comer-nos a boca, como se nelas já houvesse um mundo ou um presságio. Áugure é uma delas. É saudação no italiano mas era no império romano, e em toda a bacia mediterrânea, o nome dado aos sacerdotes que pelo voo das aves auguravam sobre a realização de uma determinada acção. Passados tantos séculos não creio que haja alguém que, pela forma como a ave se ergue e toma um rumo nos céus, se decide ou não empreender uma acção. Não porque sejamos mais racionalistas que os grandes romanos, mas porque perdemos a linguagem com que se fazem esses presságios. Eram os restos de uma observação da natureza isenta de linguagem, de um tempo mudo onde a predação e a sobrevivência imperavam.
O que hoje se pode comparar a essa observação e ao seu ditame talvez se possa encontrar na escrita de um verso, nesse nascimento afectivo das coisas nas palavras, cada vez que, alinhadas, são depositadas em página branca ou povoam o céu do nossa mente. Rir-se-ão muitos desse homem que, na margem do mundo, olhava a extensão do horizonte, demoradamente, e anotava o fracasso ou o bem devir nessas aves migratórias que passavam o grande mar, para criarem em pátria quente e fértil os seus ninhos. Nunca conseguiremos demonstrar se tinha ou não fundamento a observação do voo branco da cegonha. Nunca o conseguiremos demonstrar porque foge à lógica e ao dizível, que marcaram até ver o conhecimento humano.
Então regresso ao Sul de há muitos séculos e preparo-me, não para entender, mas para me sentar junto dos áugures, seguir-lhes os olhos e depois as aves, e ver bem marcado no azul um corpo sem doença, que nada tem do verbo com que representamos o mundo e fazemos as nossas filosofias. Estar ali é abrir um buraco na enorme prisão que é a linguagem, e por ele passar os olhos (que bem sabia se fosse o corpo!) para um outro lado.
De então regresso ao Sul de agora. Regresso a essa dimensão silenciosa das aves branquejadas, cegonhas portanto (sei que há doutras cores mas são estas que ecoam na minha planície). E vendo-as, sem piar ou grito aflito, imagino o que não sendo hominídeo para ele caminha, animal sem faringe, protótipo de homem que apenas com o ressoar dos lábios apascentava o medo e chamava pelos seus. É ainda assim a cegonha no seu piar de bico, pois lhe falta órgão para o som vocal.
É bom que as vejamos no restolho, nas chaminés abandonadas e nos postes da civilização, pois embora tímidas carregam a nossa imortalidade.

13 maio, 2008

Depois de Primo Levi



Fui capturado pela milícia fascista [...] com 24 anos, nenhuma experiência e uma acentuada inclinação para o castigo. Porque a culpa é enorme no sangue dos nossos avós.
(adaptado de «Se isto é um Homem»)

Eu não estive em Auschwitz

(como Primo Levi).
Os meus pais não são judeus
por isso não sei
por que corre sangue meu
em Auschwitz.

Sempre que vejo o filme
ou aquela velha fotografia
olho-me no espelho
e vejo-me em 80m2
alinhado com cento e vinte pessoas
(quase desconhecidos)
prontas para receberem uma palavra,
uma palavra inteira que os ajude
(ou a deus que delas se perdeu).

Estou de pé junto dos outros.
Ouvimos a cavilha do gás a soltar-se
às mãos daqueles que tinham acabado
de comer galinha frita.
Rola pelo tubo de metal
a nossa vida
o confronto último
com o nosso rosto
nos olhos dos outros:
uma última face.

Nada peço, nenhuma praga.
«Que os vossos filhos vos vejam de frente
a cara:
perscrutem nos vossos olhos
o sangue de todos
os que morreram.
Que todos estejam no vosso rosto».

11 maio, 2008

CERZIR




Quarteto para as Próximas Chuvas
João Rui de Sousa
Lisboa, D.Quixote, 2008

É nesses dias de sol (de sul)
que eu trabalho

Mesmo quando apenas sombras
crescem. E a dor é já um sal
irrecusável
(Ossos do Oficio, pg.130)

É bom ter autores que nos acompanham há muito. São aqueles a que não ficamos indiferentes quando novo livro sai.
Este novo livro de João Rui de Sousa (n.1938), que sempre nos surpreende, é dividido em quatro capítulos: Algumas Asserções sobre o Real; Oscilações e Penumbra; Fulgurações e O Rosto (o Rasto) da Escrita.
Depois de Lavra e Pousio (D.Quixote, 2005) este livro traz-nos um poeta renovado em circulação por uma realidade cendrada. O poema que abre o livro “Tempo e Transformação” é do melhor que tenho lido nos últimos tempos, dando mais uma vez a conhecer a mestria de João Rui de Sousa.
Este livro é um canto renovado sobre o real. E, simultaneamente, a demonstração que é sobre a neve que imprimimos os nossos passos, o sulco do devir na observação dos outros. Mesmo que JRS troque neve por granizo é sempre a mesma coisa: é no devir líquido e terra que «floresce / o tambor dos sinais, o rodar / das palavras, o estampido / dos dias.» (pg.29). E há a noite onde todo o caminho se metamorfoseia num «traço escuro que ressoa» (pg.37) em alguém que se mostra extenuado. É uma poesia feita num curso entre o campo e a cidade. Esta mostrando uma solidão que dilacera, e só às vezes percorrida pelo azul, e o campo mostrando a vida a crescer nas margens das águas, em plantas que mostram na claridade o seu viço. Permanece nestes poemas uma inquirição constante, espiritual, sobre a origem e o rumo da natureza. Esta que na emergência dos seus exemplares (árvores, bichos, plantas, etc.) nada nos pode dizer do seu mistério a haver que também será o nosso. Mas há nesta paisagem algo novo, aéreo, ave putrefacta que por vezes é sono outras poesia, sempre esvoaçando a caminho de um futuro que é «frio e luar» (pg.52), hesitando com medo de um voo em falso. E nesse sono esconde-se o homem e a sua linguagem (“ovo de palavras”) que se transforma «no pouco a pouco dos milénios» (pg.13) e nele tudo é transformável.
A noite é neste livro de JRS o lugar da transformação e da clarividência. Onde a morte circula vinda da luz a caminho da luz; vinda do pó a caminho da cinza, esta que é o «sábio signo dele» (pg.65) e que se evidencia num olhar sem resposta que é a morte. Desta demanda em torno de quem se ama numa idade tardia parece ter surgido o poema Diálogo.
E por último reúnem-se palavra e natureza. E desta reunião surge uma linguagem que conserva o cômputo geral das qualidades das substâncias, limitada pelo nascimento e pela morte das mesmas. Há neste ofício de reparação de algum hiato ou fenda, que o poeta persegue, sem o saber, através do poema, um homem que quer falar; que deseja, sobretudo, cerzir o lugar (vazio) à sua circunstância com o que de melhor tem para dar às palavras (ele que é língua e natureza). E assim, inesperadamente, a linguagem irrompe «rasgando a pele, a roupagem / e o próprio músculo da realidade» (pág.126), quebrando algum encanto que ainda possa haver no coração dos mortais. Por esta razão dá o poeta um «conselho aos crentes»: que não se deixem envolver pela dor que o verso reporta; «não vos deixeis […] cair na tentação da poesia!» (pág.141).
UM LIVRO A LER.

19 abril, 2008

UMA TERCEIRA MÃO





Dá-me por vezes uma vontade que não domino. Entro numa livraria e compro de uma assentada todos os livros de poesia que encontro e que foram publicados nos últimos meses. Depois vou para algum lado, mesmo para casa, e dedico-me a eles. Mesmo conhecendo bem alguns autores ou desconhecendo-os de todo, esqueço o que ouvi ou li sobre eles, e penetro nessa matéria negra que são os versos dos outros. Desse saco de livros que comprei e li destaco dois: A Terceira Mão de Manuel Gusmão (Caminho) e Vida: Variações de Bénédicte Houart (Cotovia), ambos deste ano.
Conheço a poesia do primeiro, mas nunca li nada do segundo (um poema aqui ou acolá, talvez. Mas o problema das revistas de poesia é que se tornam vendavais de nomes que se perdem e esquecemos). Manuel Gusmão tem nos seus poemas maiores um rastro que é fácil perseguir. Seguimos neles um percurso poético sem sobressaltos semânticos e construímos em conjunto essa ferida que a poesia, mais do que a prosa, sempre introduz. É bom ouvir renascer, em palavras doutro, alguns poetas convocados de que gostamos e com os quais aprendemos no seu devido tempo: Fiama, Herberto, Carlos de Oliveira, Neto Jorge e outros. É bom que as ideias emotivas de que vive o nosso percurso de leitura se levantem e reconstruam, na evocação, o desejo que percorre a superfície do mundo. No entanto, sou tentado também para uma terceira mão, aquela que se ofende, que se devora na leitura do inesperado e do infértil. E no livro de Gusmão abundam motivos para a ceifeira desta terceira mão que também, sem o saber, escreve um poema sobre outro. Ela não gosta da sobreadjectivação, da convocação de elementos metafóricos que não introduzem nenhuma valência semântica. Há muitos exemplos neste livro de Manuel Gusmão, sobretudo no capítulo Quatro Andamentos para um Alfabeto. Vejamos «e abre a árvores ao claro incêndio das suas aves» (pg.26). Porquê claro? Palavra repetida também em «Claro traço» (pg.33) e «enseada clara» (pg.26). E mais adiante «árvore da música», ou o enfeite da imagem em comparação «o flanco contra o ventre / o barco enfrentando o mar» (pg.29). Ou «a montanha lança uma pauta de sombra sobre a terra (metáfora repetida também na pág.32). Porquê pauta de sombra? Porquê pauta?
A terceira mão quer escrever um poema sobre outro poema e não consegue, devora-se.
O livro merece ser lido e, sobretudo, escutado. É este o paradoxo.

Já o livro de Bénédicte Houart é uma variação sobre temas do quotidiano. Alguns ultrapassam o suportável por serem risíveis, mas lido o riso no primeiro verso tudo avança melhor. Exemplo: «Hoje o meu cão faz dois anos de vida» (pg.31) (a terceira mão retiraria «de vida») mas deixa andar até «talvez os animais sejam donos do silêncio». E assim já se percebe o riso e o sulco que o poema faz.
Entre um registo simples do quotidiano e a evocação do trágico, os poemas deste poeta lêem-se bem, mas com algum desequilíbrio. Há pequenas ilhas que nos satisfazem. Exemplo: «abandonando a sombra em todo o lado».
É um livro a ler.

02 abril, 2008

O PÃO AS MÃOS E A CASA


Em Seia existe o Museu do Pão. Por estes dias, neste museu, o tema será “ Pão em Mão”.

E as fotografias serão do Pedro Inácio.
(Um pequeno contributo meu.)


De que me lembro? Sei que é Verão. Essa longa estação parada na memória que se quer viva. Sei que é manhã. Há já o zumbido dos insectos na vidraça por trás da cortina. Sei que é Domingo e se festeja. Sei-o, porque há no ar um cheiro de trigo, centeio, água e fermento e estala no fundo do jardim, sob telhado há muito construído, a lenha no forno aceso. E sobre aqueles cheiros um se evidencia, o de um corpo que sempre foi velho em mim, corpo de avó. Não me levanto. Deixo-me estar, envolto pela madrugada e pelo som que as mãos fazem tendendo a massa que mais tarde irá ser pão. E haverá vinho para os outros. Colo-me parado àquele som que é um rosto em esforço, desenhando as mãos que ora se afundam ora se erguem em dedos carregados de branco. É preciso que esse odor preencha todas as fissuras da casa, por isso as mãos não podem parar. É preciso que toda casa conheça o pão antes que o calor o enforme; antes que mãos já lavadas lhe escutem o toque a cozido e o ponham direitinho sobre a arca do corredor. Sei agora o que é ter um domingo e mãos assim.

03 março, 2008


Soube da notícia. Fui abrir o primeiro livro que li dela, Depois de os Pregos na Erva. Embora traga na capa Afrontamento-Porto, indica-se na página 4 que é «Edição da Autora», 1973. Já lá vai muito tempo e muitos livros de Maria Gabriela Llansol se juntaram a este na estante. Gostava da sua escrita, embora em alguns textos que ultimamente publicou encontrei ilhas em vez de continentes que é o que sempre espero dos autores que gosto. Ao abrir este livro e lida a primeira página (já não me lembrava dela) dou comigo a pensar nalguma crítica e, em oposição, o grande exercício de ficção contemporânea que é este livro (e muitos outros que se lhe seguiram ou ficaram para trás). E logo no princípio dele, aí pela página 16, dou com um texto manuscrito. A letra é minha mas não sei a quem pertencem os versos.

Serão meus? De um velho Agosto? Ou terá sido em Abril? Ou serão de um poeta que copiei nesse furor da juventude?

Aqui os deixo in memoriam. Até sempre Maria Gabriela Llansol (como diria o nosso Vergílio, seu vizinho).


No teu rosto põe um riso

e no cabelo safiras

esquece o dia que passando

regressou do ocaso onde jazia.


Esquece por um dia

o destino do sol e da noite

e regressa calmamente ao verde

«coração te quero».

23 fevereiro, 2008



Há muito que leio e investigo sobre os problemas do som. O seu despertar lento desde os fins do séc.XIX, a sua inclusão nas principais vanguardas do séc.XX, a emergência do ruído nos ofícios e artefactos humanos e as suas causas e efeitos. Por esta razão achei bonito este poema que aqui transcrevo, incluído no último livro de ANTÓNIO SALVADO, Ao Fundo da Página (Estudos de Castelo Branco, 2007). O desejo aqui transcrito é o de um acoustic mirror (espelho acústico).





Para que essa pintura de paisagem
com trigais e papoulas
e algumas discretas casas,
vivificantes palheiros,
ficasse efectuada,
deveria trazer ao nosso olhar
condescendente
um zumbido subtil
de brisa a deslocar-se,
o som não vibrante
do sino mais além do campanário,
palavras de amargura ao pôr do sol
e um calado pesar de mais um dia igual.

13 fevereiro, 2008

Nihilist Spasm band-#7-London, Ontario Canada

E agora só para ver se estou vivo, Nihilist Spasm Band

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