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Abra de alguma lucidez audível / o que nem sabe-se por palavras nem / na música caminha, nem o silêncio anuncia-o [...] (J.O.Travanca Rego)

26 novembro, 2006

UM ADEUS PORTUGUÊS


«as minhas urinas passaram já. Fizeram, bem o sei, um sulco verde, fundo, a N dimensões, depois passou a azul, depois, por mais que passe, deixei de o ver. E ultimamente já não passo, para quê?
(da Nota de Mário Cesariny no Poema-Mito «Imagem Devolvida» de Mário-Henrique Leiria, Março de 1974).

Adeus Mário,
Cesariny
e de Vasconcelos

Não Existe Céu


Fomos ver ao Nimas o último filme do Pedro Costa: Juventude em Marcha. Gostei. Nas primeiras imagens alguém lança pela janela os móveis da sala. Uma casa suspensa na noite, com um pequeno quadrado-janela que vomita mobília. Parece uma casa sozinha depois de um dilúvio que atingiu a terra. Não há vozes para a afronta. Depois alguém fala, nas escadas, de faca na mão. Não explica o acto, mas lembra-se e conta-nos a sua infância em Cabo Verde. Tudo são sombras. Depreendemos que tem que haver um céu, e nele um sol para estas sombras, mas não se vê. O céu apenas aparece duas vezes no filme: uma vez por detrás de uma árvore no jardim da Gulbenkian, e outra vez, lá mais para o fim, no «pequeno mar» do Campo Grande. O resto é um abafo rente ao chão; às ruelas do bairro das Fontainhas. Onde deveria haver mundo e nele a luz do dia, há um longo clarão que tudo abafa, que cega, como a luz que vem das janelas. Vive-se no interior das casas sem se saber se existe mundo. E quando existe, no novo bairro onde foram alojados os moradores das Fontainhas, há o desnorte, a perdição. Chama-se pelo nome. E este nome sobe as empenas brancas dos edifícios e queda-se nas janelas fechadas e no alto, rente ao céu que não se vê. Somos todos muito pobres. Pobres até ao osso, até à identidade de sermos pobres. E tudo isso dói. Dói tanto que qualquer dia os cinéfilos do mundo fazem excursões aos bairros suburbanos para se encontrarem com o Lento, a Vanda ou o Ventura. É assim todos os dias nas favelas do Rio. Mesmo assim gostei. Estamos sempre a dar de caras com uma imagem que nos lembra outro cinema, uma fotografia, seja de Ford ou Man Ray. Mas, creio, Pedro Costa chegou ao limite. Não há linguagem possível para outro filme sobre o mesmo traçado emocional e urbano destas personagens. Se outro quiser fazer, só uma câmara instalada na loucura pode filmar o que falta a este cinema.

15 novembro, 2006

OQUEEUGOSTODAHELENAALMEIDA

Os pés afundam-se,
neles a idade por aí acima
presa por um fio
que por vezes tange
noutras é silêncio

demorado no corpo
como querendo lembrar
as primeiras vozes
e depois os primeiros traços
que são olhos
– também eles únicos –
um cabelo perdido do amor.

A boca faz correr
um rastro de pólvora
pelo chão
que a minha filha diz
que é tinta
e eu digo-lhe
– para nisto acreditar –
que passe primeiro a mão
pelos olhos
e fale depois;

e nela a idade a crescer
sem saber de onde vem
o tempo
e o negro que o pai traduz.

O corpo desmancha-se facilmente, disse.
É uma aventura, acrescento.

(Helena Almeida- Dentro de mim)

AUSCHWITZ


Por que temos que voltar a Auschwitz? Por que não é apenas uma recordação? Auschwitz não pertence ao tempo. Constitui-nos como os nervos, os músculos, os ossos, o sangue e a carne. Auschwitz está tão perto da nossa intimidade que nos mete medo; que afasta qualquer sinal de reconciliação com a identidade que poderia ser a do humano.
Não são os procedimentos que afastam; não são os soldados e os oficiais a circular à noite pelas casernas. Talvez seja a magreza sem dor; o riso de uma criança a correr na calçada entre os crematórios. Não é o drama e a tragédia. Talvez seja a cor, sempre negra e sombria, que retoca diariamente a imagem de um guarda alemão regressando a casa com dois pares de sapatos e dois casacos ainda novos: os judeus vestiam-se como se, em vez de num comboio, entrassem numa sinagoga. Talvez esta dor seja intemporal.

(fotografia de Paulo Nozolino - Assassinados- Auschwitz (1994)

04 novembro, 2006

A merda acontece


Em que outro país do mundo Rui Nunes e Mafalda Ivo Cruz seriam considerados romancistas?
Li primeiro no Público, li depois nalguns blogs coisas parecidas. Ora repetindo a prosa, ora comediando. Sabemos que o país está todo em stand-up comedy; que o interessante é escrever frases que contaminem. Sei, por outro lado, que fugimos de nós; que a maioria dos críticos literários depois de afirmarem coisas do género, em qualquer país civilizado, estariam à procura doutra profissão. Recuemos ao fim da primeira guerra mundial: imaginem um crítico do New York a escrever que, depois da publicação de Paterson, só num país como a América, William Carlos Williams seria considerado poeta; ou que o velho Ulisses, de James Joyce, nunca poderia ser considerado litaratura (desconfio que eles acreditam nisso mas não o dizem); e na mesma altura, mais ano menos ano, O Som e A Fúria e Na Minha Morte, de Faulkner, poderiam ser considerados tudo, menos romances. Está bem, ganhou o prémio Nobel, e depois? Depois vêm mais dois livros de Virginia Wolf, mais dois de Hermann Broch, a Náusea de Sartre; o Beckett quase todo (e mais um milhar de livros e autores). Eu quero acabar na segunda guerra mundial porque depois torna-se impossível dizer o que é romance, o que é poema, o que é pintura, etc. Ninguém está interessado em saber o que é o romance; ninguém está interessado numa sistemática das artes contemporâneas. Assim sendo, como é possível que alguém possa dizer que só num país como Portugal, Mafalda Ivo Cruz e Rui Nunes podem ser considerados romancistas. Não sei se eles algum dia afirmaram, nalguma entrevista, que eram romancistas. A definição e o género têm alguma importância? Perante a afronta devemos ficar calados, mas só até ao momento em que nos apercebemos que muitos dos que lemos e aconselham ficaram parados no século XIX. E assim sendo, neles, a merda acontece. É pena que seja apenas em palavras. Por que não na boca?
(instalação de Maurizio Cattelan)